sexta-feira, 3 de maio de 2024

Guiné 61/74 - P25473: De volta às montanhas de Liquiçá, Timor Leste, por mor da Escola de São Francisco de Assis, em Boebau (5.ª estadia, 2024): crónicas de Rui Chamusco (ASTIL) (excertos) - Parte IV




Timor Leste > Liquiçá > Manati > Boebau > A "menina dos olhos" do Rui Chamusco, a sua Escola (dele, da ASTIL)  de São Francisco de Assis... onde faltam professores para ensinar o português às crianças que vinham longe, na montanha...

Fotos (e legenda): © Rui Chamusco (2024). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. O Rui Chamusco é um verdadeiro Dom Quixote, lutando contra os moinhos de vento da indiferença, da inércia, da burocracia... Está a 15 dias d regressar de Timor depois da sua quinta estadia, de 3 meses... E o Sancho Pança é o seu 'mano' Eustáquio, que resistiu e lutou nas montanhas contra a ocupação indonésia.  Mas até lá espera poder ultrapassar dificuldades burocráticas e falta de pessoal docente, problemas que afetam o funcionamento e o futuro da Escola São Francisco de Assis (ESFA), construída e apoiada pela ASTIL - Associação dos Amigos Solidários com Timor Leste. Nesta crónica volta a abordar alguns aspetos da idiossincrasia timorense mas também das tremendas dificuldads que se depararam ao desenvolvimento da língua portuguesa, que é língua ofiicial, a par do tétum.

Recorde-se que o Rui Chamusco, em breve nosso novo tabanqueiro, tem 77 anos, é professor de educação musical reformado, do Agrupamento de Escolas de Ribamar, Lourinhã; natural de Malcata, concelho de Sabugal, é cofundador e líder da ASTIL - Associação dos Amigos Solidários com Timor Leste.


De volta às montanhas de Liquiçá, Timor Leste, por mor da Escola de São Francisco de Assis, em Boebau (5ª estadia, 2024): crónicas de Rui Chamusco (ASTIL) (excertos) - Parte IV



Rui Chamusco e o seu amigo e 'mano'
Gaspar Sobral. Em Dili, fica hospedado casa do Eustáquio,
irmão do Gaspar. Foto: LG (2017)
Quarta crónica, enviada de Timor Leste, em 16 de abril último, às 2:18, pelo Rui Chamusco, na sua 5ª estadia (fev/maio 2024).


 

02.04.2004, terça feira  - As “loucuras” do vizinho

O Felisberto é o nosso vizinho do lado direito que já, por diversas vezes, deu azo às notícias mais caricatas que podemos imaginar. O que ele fez durante o tempo da invasão indonésia é realmente de loucos, ou de espertos, 
que para se livrar de determinadas situações, 
como por exemplo quando era aprisionado, recorria às suas “táticas de guerra” que lhe traziam sempre bons resultados. (...)  

O Felisberto lê muito, anda quase sempre de bíblia ou lá o que é na mão ou debaixo do braço, recita versículos e capítulos para basear a sua argumentação, e nas conversas que procura praticamente só ele é que fala.

Debita palavras e as frases, em tétum português, com muita facilidade, e da sua figura profética saírem sermões que nunca mais acabam. Mas esta que ontem o Eustáquio me descreveu é que não lembra nem ao diabo. 

Segundo o Eustáquio, o Felisberto durante 40 dias recusou-se a comer e a beber fosse o que fosse. Cada dia dava mais sinais de debilitado e fraco, com olheiras impressionantes e a pele encostada aos ossos. E resistiu até que pode, parece que até ao trigésimo nono dia. E, faltando um dia para os quarenta,
foi-se abaixo, desmaiou. 

A recuperação foi rápida. Ao fim de três quatro dias, o Felisberto está de novo em forma para prosseguir a sua missão. Eu disse ao Eustáquio que não acredito que o Felisberto estivesse tanto tempo sem comer e sem beber, mas ele afirma a pés juntos que foi verdade, que ninguém sabe como aguentou mas é verdade.
E E agora? Acredite quem quiser...

03.04.2024, quarta feira   - Ora toma lá mais esta...

Já, por várias vezes referi que, aqui em Timor, as coisas vão-se fazendo. Nada de pressas, porque temos todo o tempo do mundo. Às vezes fazem-nos crer que é por falta de dinheiro que as coisas não se fazem, não avançam. Mas, cá para mim, é também já um jeito de ser. 

Também em Ailok Laran é assim. A casa de família do Eustáquio tem sempre obras em curso. Aos pouquinhos vai-se fazendo e acrescentando a casa mãe dos “Sobral” , que ressalta neste contexto habitacional. Desta vez a empreitada é para assentar os mosaicos em grande parte do piso rés do chão. Para tal o Zinon, embora ausente no estrangeiro, quis orientar este trabalho, dando instruções
ao pai Eustáquio que iria ajustar esta obra a um trabalhador que um seu amigo conhecia.

E assim se fez. Depois de visitar e ver o que tinha a fazer, combinaram o preço e mãos à obra. Ontem começaram os trabalhos. Entretanto, o Eustáquio que tinha ido a Boebau voltando à tardinha, viu o trabalho já feito e não gostou. Não estava a seu gosto nem como ele sabia fazer. Telefona ao Zinon dizendo o que se passa, resultando de tudo isso o cancelamento do contrato. 

E, logo hoje de manhã, ele mais o Tobias (seu “sobrinho”) metem mãos à obra, corrigindo o que não estava bem e prosseguindo a colocação dos referidos mosaicos. Agora mesmo, enquanto escrevo, estou ouvindo os toques do martelinho de madeiro ou borracha assentando e ajustando cada mosaico. 

Ao almoço, em conversa informal ele revelou-me o segredo: “É preciso sentimento para fazer este
trabalho. O outro senhor assentava as peças mas não tinha sentimento.” E pronto. No final da obra vamos ter uma casa cheia de sentimentos.

03.04.2024, quarte feira  - Esta mocinhas novas...

A Adobe e as primas (Zaida e Mina) são umas moçoilas adolescentes que despertam para a vida. Muito unidas para tudo, com surpresas que nos encantam. Estão na fase das pinturas das caras e das unhas. Cada uma ajuda a outra, ou então só cada uma, aplicam os materiais apropriados, com toques e retoques, muitas miradas ao espelho, poses para a fotografia, etc... 

E então não é que elas ficam mesmo giras?! Pena é que logo a seguir desfaçam a beleza que conseguiram alcançar. Mas pouco importa, porque elas são mesmo lindas sem serem pintadas. Mas, lá que elas são muito vaidosas, ah lá isso são... “ Minina Bonita! “, como dizem por aqui.

04.04.2024, quinta feira  - Mentes espertas

Hoje a conversa com o Eustáquio deu nestas duas histórias que aconteceram por aqui mas que podemos encontrar em muitos outros lados. E tudo veio à baila de lhe ter contado a história do primo Manel Russo que, depois de concluir a Aliance Française, em Paris, foi pedir trabalho ao Institut du Vrai Portugais, cujo proprietário e diretor era o nosso conhecido ex-padre Zé Pedro. 

O Manel, qual professor, ficou agradecido porque lhe foi dito: “ Se quiseres podes começar a trabalhar já amanhã." E assim fez. Passou-se um mês de trabalho, e o novo professor, como o ordenado nunca mais era pago, foi junto do diretor e perguntou: “Alors, mon salaire?” O diretor olhou para ele e retorquiu: “ O teu salário?! Tu só me pediste para trabalhar!”. 

Então o Eustáquio riu, mas acrescentou duas histórias mais ou menos relacionadas com a que acabei de contar.

A primeira: Um senhor que vive nas montanhas teve de vir à capital para tratar dos seus assuntos. Chegada a hora do almoço procurou um restaurante onde pudesse comer. Entrou, sentou-se a uma mesa, e de pronto chegou um empregado que lhe perguntou: “O que quer comer?” E logo lhe fez uma lista do pretendido. 

Comeu e bebeu o que pediu e, para espanto geral, o senhor levantou-se para ir embora. Foi então que o empregado o atalhou e lhe disse: “ o senhor ainda não pagou”. Ao que o cliente respondeu: “você
perguntou-me só o que queria comer e beber. Porque é que agora tenho de pagar? O senhor ofereceu, não é?...”

A segunda é esta: Veio um senhor de longe num bis (espécie de autocarro) até à cidade. Chegou ao destino e pagou uma quarta (25 cêntimos) ao condutor. Depois, teve que alugar um táxi convencional para a casa onde iria ficar. Perguntou quanto era ao chauffeur e ele respondeu: “3 dólares”. E o viajante, espantado, comentou: “Eh!... então eu paguei uma quarta por um carro grande e agora por um pequenino são três dólares!

Não pode!... E assim funcionam estas mentes brilhantes...

06.04,2024, sábado - Impressionante!

Vamos lá a ver quem faz mais barulho, quem tem oa aparelhagem de som mais potente... Isto até poderia ser tomado com um concurso, mas não é bem assim. Neste sábado de fim de semana, ouvem-se músicas provenientes de todos os lados: vizinhos de trás, vizinhos da frente, vizinhos do lado, vendedores ambulantes, e até cá em casa se ouvem an canções que a Adobe está frequentemente cantando mas sem amplificação.

Isto é uma animação matinal fora de série. E não é por que haja festa na aldeia. É assim mesmo. Cada um à sua maneira curte a vida, mesmo que seja ouvindo as músicas preferidas em altos decibéis. Aqui ou a gente se deixa levar por toda esta agitação musical ou então é para ficar surdo. A lei do ruído não existe, e não podes recriminar ninguém pela utilização que faz dos sons. 

Neste contexto, há momentos que ouvi algo contraditório. Com o nível de som audível a centenas de metros, alguém cantava, acompanhado com guitarra e bateria, a mítica canção de Paul Simon “the souns of the silence”. Como é que o silêncio se pode ouvir ou cantar em altos berros, com ritmos
marcantes?! 

É uma amálgama de emoções. Calma, que agora aqui ao lado fez-se silêncio, e até já se ouvem os passarinhos a piar, os galos a cantar e as crianças a chamar, a rir, a chorar.

07.04.204, doingo,  - “Pancadas de Molière”

Cada dia, cada noite avança de surpresa em surpresa. Sem horas para começar ou acabar, vão-se fazendo as coisas conforme a disponibilidade e a vontade. Com-se quando há fome (e há para comer), dorme-se quando há vontade de dormir, trabalha-se quando há que trabalhar. Sem pressas, com sentimento e coração. E nós, os ocidentais, vamos lá a entender isto?!... 

Ontem o Eustáquio chegou estoirado das viagens às montanhas e, mesmo assim, não deixou para trás o que tem de fazer, a saber: assentamento de mosaicos nos rés do chão, como já antes descrevi. Ele e o Tobias agarraram-se à obra, e aí vai disto. Já eram duas horas da manhã e ainda se ouviam as pancadinhas nos mosaicos que, minuciosamente eram assentes e testados pelo nível de água e pelos sons que o martelo de borracha garantiam. Agora imaginem para alguém que aqui se deita pelas 22 horas e que tem bom ouvido o tormento destas “pancadinhas de Molière”. 

Mas, como um bom timorense, também direi.” Quem tem mesmo sono, dorme. Quem não tem sono, não precisa de dormir, só está na cama”. E o que mais me admira no meio de tudo isto é a resistência e o saber do Eustáquio que, onde mete a mão, as coisas são feitas mas bem feitas, demore o tempo que demorar. É um “homem dos sete(ou mais) ofícios” que qualquer patrão gostaria de ter, com pancadas ou sem “pancadas de Molière”.

08.04.2024, segunda fera  - Tanto para fazer!...

E lá vamos nós outra vez a Liquiçá, fazer o que temos que fazer: entregar o dossiê do processo da proposta de colaboração na Direção da Educação; apresentar cumprimentos ao novo Presidente da Administração Municipal; visitar o Cafe de Liquiçá. 

E começo a ser como os timorenses (grego com os gregos; troiano com os troianos). Não por conveniência, mas porque são mesmo assim. O diretor da educação disse-os logo que o processo irá ser demorado, porque têm de pedir o parecer jurídico, que por sua vez também será demorado, e só depois se apresentará ao ministério da educação para que seja tomada uma decisão final. Que ao menos seja a nosso favor! 

O encontro no município correu bem, embora tivesse sido escasso. No entanto, ficou um encontro
marcado para o dia 22 de abril, no qual darei a conhecer o município de Sabugal, servindo-me das informações e materiais de que fui portador. E tudo isto porque há um acordo de colaboração entre os dois municípios Liquiçá e Sabugal que é preciso desenvolver.

A visita ao CAFÉ tinha como objetivo saber notícias da Maria que frequenta o pré.escolar e da Titânia que frequenta o 5º ano. Azar!... Os alunos estão de férias, porque é o final do 1º período, e os professores estão nas reuniões de avaliação. Felizmente que a professora Teresa, coordenadora da escola, nos dispensou o seu tempo para pormos a conversa em dia.

10.04.2024, quarta feira  - Gleno... Pleno

Um dia em cheio! A convite do amigo professor Mário Louro, fomos até ao grnde vale de Gleno, para a escola CAFE, onde alguns professores e alunos nos esperavam para nos apresentarem o trabalho em elaboração de um sketch sobre os 50 anos do 25 de Abril em Portugal. 

Quiseram ouvir as minhas dicas, sobretudo as relacionadas com a música (porque dizem que eu, como professor de música, sou especialista, e que humildemente tentei fazer) mas, confesso, que pouco ou nada pude acrescentar porque tudo estava já muito bem escolhido. Mais um pouco de performance e o trabalho ficaria cinco estrelas. 

Valeu a pena conhecer esta gente, estes amigos e poder partilhar com eles a maior parte das horas deste dia. E, já agora, muito sucesso para o fim a que se destina: contribuição do Cafe de Gleno para a celebração do 25 de Abril, a pedido da embaixada de Portugal. Valeu a pena subir montes, descer vales, serpentear caminhos e estradas.

Um facto interessante é que em Tibar, na ida e na volta, ao visitarmos a fraternidade dos Capuchinhos e a fraternidade das Irmãs Concepcionistas ao Serviço dos Pobres, se tenha verificado o mesmo acontecimento: depois de batermos à porta ou tocarmos a campainha várias vezes, e já desistindo de sermos atendidos, aparece um capuchinho que nos atende e a carrinha das irmãs que, amavelmente nos saúdam. Em ambos os casos tivemos de voltar para trás, mas valeu bem a pena. A irmã Teresa, superiora da comunidade, depois de eu me apresentar perguntou-me logo: “Você é da Guarda?”... "Sim”... É que a irmã Rita, que vive na comunidade de Lautem e que também é da Guarda, perguntou por si. Na celebração do envio esteve com a sua mãe que lhe manda cumprimentos, beijos e abraços”. 

Ora aqui está uma grande confusão! Então a minha mãe já faleceu em 2004, e eu com 77 anos já bem feitos, como pode isso ser? Depressa me dei conta de todo este engano e retifiquei a situação. De qualquer forma, peno ainda estar com a irmã Rita e agradecer-lhe esta preciosa encomenda.

12.04.2024, sexta feira  - Mas o que é que Deus anda a fazer ?

Cada dia que passa enriquece-nos com conhecimentos vindos de histórias e casos que nos contam. Ontem foi a irmã Teresa que nos contou este caso. Havia num lar um senhor que fez 99 anos e todos os que com ele lidavam o animavam dizendo: “ Senhor José, vamos lá ter ânimo porque você é a pessoa mais idosa desta casa, e temos de festejar os seus cem anos.”

 E o tempo foi decorrendo, até que se soube da existência de uma senhora que já tinha feito os 100. Então a mesma pessoa que o animava chegou um dia à sua beira e disse: “Senhor José, afinal não é você a pessoa mais velha, porque há uma senhora que já fez os 100 anos”. Ao que o velhote retorquiu: “Mas o que é que Deus anda a fazer? Esqueceu-se de a levar?”... 

E ainda há quem queira morrer...Ai Costa! A vida Costa!...

12.04.2024, sexta feira  - Eustáquio, o “perfecionista”.

Já por várias vezes referi o zelo com que o Eustáquio faz e e cuida das coisas. Como ele diz: “Há-que fazer as coisas com sentimento”. Então não é que o artista que agora anda a assentar os mosaicos cá em casa, não seguiu a linha que lhe indicava a boa direção? E vai daí que o Eustáquio, já depois de se ir embora o trabalhador, se deu conta do desvio e procedeu ele mesmo ao alinhamento, como que a dizer “amanhã quando chegar vou mostrar-lhe o erro e vai ter que arrancar para pôr de novo”. 

Dito e feito. Esta manhã que já vai a meio, cá se ouvem as marteladas a desfazer o que já estava feito, para refazer como deve ser. Não sei não, mas se isto se desse com alguns portugueses, quem sabe se acatariam as ordens do Eustáquio sem barafustarem. Mas aqui em Ailok Laran, o Eustáquio é um homem de respeito que muitos procuram para resolver situações e, com certeza, ninguém se atreveria a contestar as suas ordens. E até porque ele tem razão.(...)
 

15.04.2024, segunda feira  - Mais uma voltinha...

Esta vida é um carrossel que, de volta em volta, faz a vida acontecer. A volta de hoje insere-se nos esforços que temos vindo a fazer para encontrar uma solução para a colocação de professores na escola São francisco de Assis. Hoje, por sugestão e influência do Dr. Dionísio Babo, anterior ministro da Justiça e atualmente embaixador de Timor Leste na ONU, vamos falar com o professor Roger Soares, coordenador das escolas CAFE neste país. 

Não sei o que isto vai dar, mas parece-me que pouco mais passará de uma apresentação. Ou então ficará tudo em promessas que nunca serão cumpridas, como já vai sendo habitual neste contexto.  Presencialmente louvam o que estamos fazendo, batem palmas a este projeto solidário, mas não passa daqui. 

Eu sei lá o que mais podemos fazer!? E eu gostava tanto que este assunto se resolvesse durante esta minha estadia em Timor. É que daqui a um mês, 15 de Maio, estarei de regresso a Portugal. E, com franqueza, não sei quando e se voltarei. As viagens e as condições de vida já fazem mossa neste corpo em envelhecimento. Mas o futuro só a Deus pertence...

15.04.2024, segunda feira  - De novo esta história...

Creio que já abordei esta história numa das crónicas das estadias anteriores, mas a sua graciosidade é tanta que hoje, ao coment-la com o Eustáquio, deu-me vontade de a reescrever. Então aqui vai. 

Conta-se que um rapaz, filho de gente de posses, foienviado para Portugal afim de fazer os estudos num seminário para vir a ser padre. (padre / amo é talvez das profissões mais estimadas e respeitadas, ainda hoje, aqui em Timor Leste). O rapaz foi para Portugal mas em vez frequentar os estudos do seminário
dedica-se a outras ocupações que derretiam o dinheiro enviado periodicamente pelo pai.

Entretanto, chegou a altura de ele regressar a Timor e este “falso estudante” do que se lembrou? Comprou o pano preto necessário e foi ao alfaiate mandar fazer uma batina. Quando o avião aterrou em Dili, tinha a família à sua espera que orgulhosamente acolhia o filho padre. E, como de padre não tinha nada, ía proferindo frases em “latim” para que acreditassem que ele tinha mesmo estudado para padre em Portugal. 

Uma das frases mais célebres é esta: “Ó canes como me pat lá sa me. Eu sou cá como te.” Ora,
quem percebe alguma coisa de latim, vê logo que não há na frase nada que se aproveite.
O resto da história não se sabe. Mas quem o ouvia afirmava: “Sim! Ele fala latim, como
os padres. E esta história acaba assim..

15.04.2024,  segunda feira - Isto dá que pensar...

Pátria! Pátria! Timor-Leste, nossa nação. Glória ao povo e aos heróis da nossa libertação!” Quem não vibrou com a independência deste país irmão? Aqui ou no estrangeiro, e sobretudo em Portugal, foram momentos de emoção ao ouvirmos pela primeira vez o hino de Timor-Leste e ao vermos içar pela primeira vez a bandeira deste povo. Foi um momento muito esperado e muito vivido. 

De então para cá 23 anos já são decorridos e, como em qualquer país, há quem se pergunte sobre as vantagens e as desvantagens de ser um país independente ou de ser uma província da Indonésia. Ainda hoje ouvi um comentário de alguém que sofreu muito com a invasão: 

“No tempo dos indonésios havia estradas boas para todos os distritos, escolas também. Agora com a independência, há alguns que têm bons empregos, bons carros, boas escolas e outras coisas mais. Mas a maioria do povo o que é que tem? Se o referendo fosse hoje, se calhar não votaria a favor da independência.” 

Por outro lado, a língua bahassa ainda está muito arreigada na população. Muito mais que a língua portuguesa, que é a segunda língua oficial. E, apesar dos muitos esforços que os governos de Portugal e de Timor têm feito, não vai ser nada fácil fazer vingar a língua de Camões. Nas famílias, nos mercados e na maioria das escolas fala-se o tétum e o bahassa e não o português. É muito lindo querer que as pessoas falem a nossa língua, mas não será fácil ou até mesmo impossível que isso aconteça. Quem me dera poder estar enganado...

15.04.2024, segunda feira  - É fazendo que se aprende a fazer...

Neste caso é bebendo que se apanha o gosto. O Eustáquio, durante a sua estadia em Portugal viu que as pessoas consumiam um bebida que sempre o intrigou e desejaria experimentar, mas que não o fez. Hoje, no bar do Pateo, ao perguntar-lhe o que queria beber, primeiro pediu um sumo de compal, só que depois avistou uma garrafa de Frize e pediu para trocar, porque queria experimentar aquela bebida que desde Portugal o intrigava. 

Já numa mesa sentados para saborearmos o que tínhamos pedido, o Eustáquio, com muita apreensão, leva a Frize à boca e, de repente, repele a bebida dizendo:” Eh pá, não presta! Não tem gosto!” Pudera, pois a Frize é uma água mineral gaseificada!... Ainda lhe adicionou dois pacotes de açúcar que sobraram do meu café mas, mesmo assim, não conseguiu consumir a porção que a garrafa continha. Fez questão de trazê-la para casa como recordação desta degustação.

(Revisão / fixação de texto: LG)

Conta solidária da Associação dos Amigos Solidários com Timor Leste (ASTIL)

IBAN: PT50 0035 0702 000297617308 4
__________

Nota do leitor:

Guiné 61/74 - P25472: Parabéns a você (2267): Delfim Rodrigues, ex-1.º Cabo Aux Enfermeiro da CCAV 3366 / BCAV 3846 (Susana e Varela, 1971/73)

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Nota do editor

Último post da série de 1 DE MAIO DE 2024 > Guiné 61/74 - P25464: Parabéns a você (2266): Manuel Luís Lomba, ex-Fur Mil Cav da CCAV 703/BCAV 705 (Bissau, Cufar e Buruntuna, 1964/66)

quinta-feira, 2 de maio de 2024

Guiné 61/74 - P25471: Testemunhos - Será Que Pertenço à Geração D? Acho Que Sim (António Inácio Correia Nogueira, ex-Alf Mil da CCAÇ 16 - CTIG, 1971 e ex-Cap Mil, CMDT da CCAV 3487 / BCAV 3871 - RMA, 1972/74)


1. Mensagem do nosso camarada António Inácio Correia Nogueira, Doutor em Ciências Sociais, especialidade em Sociologia, ex-Alf Mil da CCAÇ 16 (CTIG, 1971) e ex-Cap Mil, CMDT da CCAV 3487 / BCAV 3871 (RMA, 1972/74), com data de 30 de Abril de 2024:

Caro camarada Carlos
Boa saúde, meu amigo.
Como pode ter interesse, envio-te um texto designado Geração D que está ligado a um Capitão da Guiné: Carlos de Matos Gomes.
Podes divulgar.

Abraço do amigo agradecido.
António Inácio Correia Nogueira



Testemunhos

Será Que Pertenço à Geração D? Acho Que Sim


Tenho a honra de ser amigo e admirador do autor do livro, publicado recentemente e que se intitula Geração D Da Ditadura à Democracia. Perguntei-me no final da viagem: será que pertenço à geração D, que o autor refere?

Carlos de Matos Gomes, um conhecido Capitão de Abril, foi um distinto oficial do Exército, com comissões em Angola, Moçambique e Guiné, onde protagonizou feitos que o classificam como combatente notável. É um douto investigador de história contemporânea, com inúmeras publicações em nome próprio ou em co-autoria. Com o pseudónimo literário de Carlos Vaz Ferraz, publicou dezenas de romances de entre eles Nó Cego – um fabuloso trabalho – testemunho sobre a Guerra Colonial – porventura, um dos melhores.

Pertenceu ao MFA da Guiné, o movimento charneira do 25 de Abril, de onde emergiram alguns dos seus heróis, feitos na guerra de Guidage e de muitos outros lugares de perigosidade maior, assim tornados pela guerrilha do PAIGC. De entre eles, reconheço, Salgueiro Maia.

Como afirma no seu livro, “Optou por lutar sem esperança de vencer em vez de tentar vencer sem coragem de lutar”.

Escrevi uma obra [Capitães do Fim do Quarto Império] para a qual Carlos de Matos Gomes me privilegiou com uma entrevista e comentou, posteriormente, da seguinte forma: “Um excelente livro para quem queira, com seriedade intelectual, perceber o esgotamento dos quadros na Guerra Colonial que foi uma das causas do seu fim. Contraria as bravatas dos patrioteiros e de mixordeiros da história… tem números, documentos…”.
Nesse livro, comentado pelo autor da Geração D, atrevo-me a escrever:
“Nos anos terminais da Guerra Colonial, a Academia Militar deixou de cumprir, por falta de candidatos, a sua missão capital: formar as elites militares intermédias de combate. Os Capitães do Quadro Permanente soçobraram. Ficou-se em presença de um Exército quase miliciano, num clima de forte contestação à guerra e de fraca motivação para lhe dar continuidade. No entanto, a defesa do Império, a todo o custo, era a política vigente, apesar do visível cansaço da Nação.

Para ajudar a obviar este desiderato, foi decretada a formação acelerada de Capitães milicianos na Escola Prática de Infantaria. Formaram-se à volta de cento e sessenta por ano. Em cerca de catorze meses fazia-se de um estudante universitário, quase sempre em estádio avançado de licenciatura, ou de um licenciado, um Capitão combatente para actuar nos teatros de guerra mais exigentes de Angola, da Guiné e de Moçambique. O modo de selecção destas novas elites pelejadoras, e a formação apressada a que foram sujeitas, deram ensejo a que alguns as apelidassem, desdenhosamente, de “Capitães de proveta” ou “de “aviário”. Eu fui um desses Capitães do Fim. Levei muitos meninos – soldado atrás de mim com a missão de os enquadrar, o melhor possível, em zonas de guerra intensa e evitar a sua morte. Passei o 25 de Abril pertinho de perecer, mas lutei para viver, eu e eles.

O livro do meu amigo, se bem entendi, fala da geração de militares que fizeram o 25 de Abril. Eu não fiz o 25 de Abril, mas contribui para que se desse. Pertenci, pois, à Geração D, “de dilemas, desobediência e também dever”.
Diz o autor da Geração D: “Esta geração protagonizou a grande mudança da história de Portugal, a que acabou com a guerra, a que acabou com a ditadura.” É a geração das lutas estudantis, dos partidos jovens de protesto, da deserção, da descolonização, das discussões políticas de café, da dialéctica, da utopia, da denúncia, da transgressão…
Como diz, mais à frente, Carlos de Matos Gomes: “A Geração D viveu sob um «regime de doidos» do Império e libertou-se dele, calhou-lhe ser a primeira geração que, pela liberdade e universalidade do voto, foi inteiramente responsável pelo seu futuro…
O D dos dilemas é também o do desafio e o do desprezo pelos desprezíveis da Geração D.”


Grande livro, para ler e meditar. Passaram 50 anos, viva o 25 de Abril…

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Nota do editor

Post anterior de 25 DE ABRIL DE 2024 > Guiné 61/74 - P25445: Os 50 anos do 25 de Abril (13): Testemunhos - Numa Das Malas Velhas Da Minha "Fundação" (António Inácio Correia Nogueira, ex-Alf Mil da CCAÇ 16 - CTIG, 1971 e ex-Cap Mil, CMDT da CCAV 3487/BCAV 3871 - RMA, 1972/74)

Guiné 61/74 - P25470: A minha ida à guerra (João Moreira, ex-Fur Mil At Cav MA da CCAV 2721, Olossato e Nhacra, 1970/72) (41): HISTÓRIA DA COMPANHIA DE CAVALARIA 2721: População recuperada ao PAIGC



"A MINHA IDA À GUERRA"

João Moreira


POPULAÇÃO RECUPERADA AO PAIGC


1970/ABRIL/23
- Emboscada a sul da antiga tabanca do Maqué.
RECUPERAMOS:
8 mulheres
2 crianças

1970/ABRIL/29
- Emboscada a sul da antiga tabanca do Maqué.
RECUPERAMOS:
2 mulheres
1 criança

1970/MAIO/14
- Emboscada em BINTA4B3 (2.º GCOMB)
RECUPERAMOS:
1 guerrilheiro ferido

1970/MAIO/26
- OPERAÇÃO "JAGUAR VERMELHO" - Bissancage (4.º GCOMB)
RECUPERAMOS:
1 guerrilheiro ferido

1970/JUNHO/28
- Emboscada no bico da bolanha Maqué/Bissajarindim
RECUPERAMOS:
1 homem
10 mulheres
3 crianças

1970/JUNHO/29
- Emboscada no bico da bolanha Maqué/Bissajarindim (noutro local)
RECUPERAMOS:
2 homens
1 mulher

1970/JULHO/08
- Patrulhamento a 2 GCOMB, a Iracunda e Manaca (1.º e 2.º GCOMB)
RECUPERAMOS:
2 homens
11 mulheres
4 crianças

1970/JULHO/13
- GOLPE DE MÃO A AMINA DALA = "OPERAÇÃO BACARÁ" (4.º e 1.º GCOMB)
RECUPERAMOS:
15 homens
5 mulheres
17 jovens e crianças

1970/AGOSTO/07
- OPERAÇÃO "ALMA MINHA"
RECUPERAMOS:
1 mulher

1970/NOVEMBRO/13
- RECUPERAMOS:
1 homem vindo do Senegal

1970/NOVEMBRO/14
- GOLPE DE MÃO A AMINA DALA = "OPERAÇÃO BRAIMA"
RECUPERAMOS:
1 homem
6 mulheres
8 crianças

1970/NOVEMBRO/19
- Apresentou-se 1 homem balanta com 1 PPSH

1970/DEZEMBRO/30
- GOLPE DE MÃO A CANJAJA UNHADA (2 GCOMB/CCAV 27212 + 2 GCOMB/CCP121 RECUPERAMOS:
1 homem
7 mulheres
6 crianças

1971/JANEIRO/31
- ACÇÃO "UMBELUZI", em Bissancage.
RECUPERAMOS:
1 homem

1971/FEVEREIRO/05
- OPERAÇÃO "URSO NEGRO", em Lubacunda e Bantasso.
RECUPERAMOS:
1 homem
2 - mulheres

1971/MARÇO/05
- GOLPE DE MÃO A CANTACÓ E BANTASSO.
RECUPERAMOS:
1 homem
9 mulheres
5 crianças

1971/ABRIL/01
- EMBOSCADA NA BOLANHA DO MAQUÉ
RECUPERAMOS:
1 mulher

1971/ABRIL/24
- PATRULHAMENTO A CANICÓ E SANSABATO
RECUPERAMOS:
2 homens

1971/MAIO/??
- PATRULHAMENTO OFENSIVO A MARECUNDA (1 GCOMB/CCAV 2721 + 2 GCOMB/CCAV 3378)
RECUPERAMOS:
4 mulheres
2 crianças

(continua)

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Nota do editor

Último post da série de 25 DE ABRIL DE 2024 > Guiné 61/74 - P25444: A minha ida à guerra (João Moreira, ex-Fur Mil At Cav MA da CCAV 2721, Olossato e Nhacra, 1970/72) (40): HISTÓRIA DA COMPANHIA DE CAVALARIA 2721: Minas levantadas ou accionadas

Guiné 61/74 - P25469: Nos 50 anos do 25 de Abril (16): O fotornalismo da guerra, que os senhores do lápis azul deixavam passar, às vezes, em revistas como a "Flama", órgão oficial da JEC-Juventude Escolar Católica (1937-1983)

 



"O inimigo pode atacar a qualquer momento- Os rostos desta guerra, marcados pelo esforço e pela tensão nervosa de muitas horas de angústia, aguardam".




"Uma pausa no esforço diário mas logo prosseguem"


"Vai começar... O Grupo de Combate reune-se na base antes de mais uma operação"...


"Determinação. O rosto do soldado indígena, de metralhadora às costas, revela um firme propósito"


"Hora do rancho, após uma operação. O apetite é redobrado."




"Flama", Ano XXIII, nº 1000, 5 de maio de 1967, pp. 78/79 (Cortesia de Hemeroteca Digital de Lisbia / Câmara Municipal de Lisboa). 

(Adapt. livre de Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné... Com a devida vénia)


1. Era o "jornalismo" possível. Era o "fotojornalismo de guerra" possível... A "Flama", que se lia no ultramar, que chegava aos quartéis na Guiné, comemorava  em 5 de maio de 1967 o seu nº 1000. Tinha nascido em 1937, da iniciativa de um grupo da JEC - Juventude Escolar Católica, com a benção de Salazar e do Cardela Cerejeira. Era então marcadamente masculina,  e de teor religioso. Redefine-se a partir de 1944... Definia-se, ainda em 1967,  como "um semanário de atualidades de inspiração cristã".... Era então uma das revistas portuguesas mais antigas. E é hoje considerada um marco importante na história do jornalismo português, e nomeadamente do jornalismo feito por mulheres e para as mulheres.  Por ela passaram mulheres, jornalistas, como Maria Teresa Horta, Regina Louro, Edite Soeiro...

Nesse número especial,  dezasseis páginas (num total de 116) eram dedicadas ao cinquentenário de Fátima, na véspera da visita do Papa Paulo VI. Na altura custava 5$00 o número avulso (equivalente hoje a 2 euros; em 3 de maio de 1974, já custava o dobro, 10$00,  também 2 euros, a preços de hoje).

Duas páginas, cheias de fotos e sucintas legendas eram dedicadas à "Guiné: rostos de uma guerra". Evitando-se a propaganda mais descarada do regime. escreve-se:

  • "a luta na Guné prossegue sem quartel";
  • "militares de todos os ramos das forças armadas, generosos na sua juventude";
  • " cumprem a sua comissão de serviço";
  • "momentos dramáticos, arrancados ao quotidiano do soldados português";
  • "o rosto do soldado indígena" (sic)...

Uma raridade, em todo o caso,  na imprensa portuguesa da época, o aparecimento de fotos, com algum dramatismo, de militares portugueses em pleno  teatro  de operações da Guiné, já então o mais duro das "três frentes"....

Mas as fotos são provenientes dos... "fotocines"... no texto diz-se "amavelmente cedidas pelos repórteres dos Serviços Cartográficos do Exército" que eu, por exemplo,  nunca vi, ao meu lado, em operações, no meu tempo (junho de 1969 / março de 1971). As legendas da "Flama" são obviamente escritas no conforto da redação... em Lisboa, e na ignorância do que era realmente uma guerra de guerrilha e contra-guerrilha  ("subversiva e contra-subversiva", na linguagem da tropa de então). Por outro lado, havia o "Big Brother" da censura...

Mas é a "reportagem possível" de uma revista, respeitável, até "arejada",  oroginalmenet ligada à Igreja Católica, e que, para além dos assinantes, tinha uma boa fonte de receita na publicidade (muita dela já virada, nos anos 60/70, para o público feminino).

O seu primeiro diretor foi o dr. António dos Reis Rodrigues (1918-2009), um dos homens mais influentes da hierarquia eclesiástica de então: 

  • assistente eclesiástico da Juventude Universitária Católica (JUC) (1947-1965);
  • capelão (desde 1947) e professor da Academia Militar (onde leccionava Deontologia Militar e Ética);
  • procurador da Câmara Corporativa, na VIII Legislatura (1961/65), como representante  da Igreja Católica;
  • responsável pelo programa religioso da RTP (até 1966);
  • nomeado em 1966 bispo auxiliar de Lisboa, sob o título de Bispo de Madarsuma, com as funções de Capelão-mor das Forças Armadas (1967-1975);
  • membro da Conferência Episcopal Portuguesa, onde desempenhou várias funções, sendo Secretário (1975-1981) e vice-presidente (1981-1984);
  • vigário-geral do Patriarcado de Lisboa (1984)...
Temos algumas referências, no nosso blogue, ao senhor bispo de Mardasuma que, honra lhe seja feita, teve a corgem de ir dizer  missa na mítica Gandembel e lá teve o seu batismo de fogo, no Natal de 1967 (**).

Era o diretor da "Flama" quando se deu o 25 de Abril de 1974. A revista vai dedicar um número especial ao acontecimento. Iremos reproduzir algumas imagens dessa edição (**).



Guiné > Região de Tombali > Gandembel > 25/12/1968 > Missa de Natal celebrada pelo capelão-mor das Forças Armadas, bispo de Madarsuma. Foi a última missa celebrada em Gandembel (o aquartelamento seria abandonado um mês depois, por ordem do Com-Chefe)... E nesse dia de Natal o Dom António dos Reis Rodrigues teve o seu batismo de fogo...

E ainda propósito desta foto, o nosso camarada  Antº Rosinha escreveu em genial comentário ao poste P13616: 

(...) A foto da "Última Missa em Gandembel", é uma das fotos mais falantes do que qualquer outra que se possa ver sobre a Guerra do Ultramar. Aquela mesa/altar, aquele ajudante em tronco nú, representam bem o desenrascanço da malta.

Esta última missa documentada por Idálio Reis contrasta com a 1ª missa, festejada por índios e pintada por artistas e documentada pela carta de Caminha. Quatro dias após ter chegado em Porto Seguro, no Domingo de Páscoa, em 26 de abril de 1500, Cabral determinou que se realizasse uma missa no ilhéu da Coroa Vermelha. Foi a Primeira Missa celebrada em solo brasileiro e o evento foi documentado pela Carta de Caminha. (...)


Foto (e legenda): © Idálio Reis (2007). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]
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Notas do editor:

(*) Vd. postes de:

15 de maio de 2023 > Guiné 61/74 - P24317: Recortes de imprensa (126): O caso do capelão militar Arsénio Puim, expulso do CTIG em 1971 (tal como o Mário de Oliveira em 1968) não foi excecional: o jornalista António Marujo descobriu mais 11 padres "contestatários" (10 da diocese do Porto e 1 de Viseu)... Destaque para o trabalho de investigação publicado na Revista do Expresso, de 12/5/2023

17 de setembro de  2014 > Guiné 63/74 - P13616: Os nossos capelães (4): O bispo de Madarsuma, capelão-mor das Forças Armadas, em Gandembel, no natal de 1968 (Idálio Reis, ex-alf mil, CCAÇ 2317, Gandembel / Balana, 1968/69)

Guiné 61/74 - P25468: Notas de leitura (1687): "Poemas de Su Dongpo", introdução e notas de António Graça de Abreu (Lisboa, Grão-Falar, 2023, 177 pp.) Parte I


Capa do livro, "Poemas de Su Dongpo". Tradução, introdução e notas de António Graça de Abreu (Lisboa, Grão-Falar, 2023, 177 pp.). O livro pode ser encomendado através da plataforma Wook.



Amável dedicatória autografada do autor do livro, que eu aceito como homenagem ao nosso blogue e à nossa Tabanca Grande, onde cabemos todos com tudo o que nos une e até com aquilo que nos pode separar.


1. Mais um trabalho do nosso amigo e camarada António Graça  de Abreu, escritor, poeta, tradutor, sinólogo (especialista em língua, história e cultura do Império do Meio,a grande China) (tem 343 referências no blogue). 

Culmimando um aturado e meticuloso labor de vários anos, dá agora à estampa os "Poemas de Su Dongpo", poeta chinês do séc XI.

Pormenor que não nos escapou, numa primeira leitura aprazível e atenta, foi a dedicatória que o autor faz a uma pessoa que lhe era muito querida e que morreu nesse ano de 2023, o avô dos seus filhos: "Em memória de Wang Renlun (1929-2023), alma de Su Dongo, meu Pai, meu Mestre,meu Amigo".

O poeta (e mandarim, mas também pintor, calígrafo, escritor multifacetado) é um dos grandes da literatura chinesa, tendo nascido em 1037 na cidade de Meishan, cidade da província de Sichuan, "no sopé de Emeishan, uma das quatro montanhas sagradas do budismo chinês" (pág. 9). E morreu em 1101, aos 64 anos, depois de uma vida exaltante e atormentada, em que conheceu tudo, o amor, a fama, a glória, o exílio. 

Das cerca de três centenas de poemas de Su Dongpo que chegaram aos nossos dias, o António Graça de Abreu traduziu para português 160. Para ele, é também uma aventura, uma ousadia, um prazer.

Nas suas cinquenta páginas iniciais, em que faz uma detalhada introdução à vida e obra do poeta ("Su Dongpo, um poderoso ser humano", pp. 9-59),  o nosso sinólogo debruça-se, mais uma vez, sobre a difícil arte e engenho que é a tradução da poesia, e para mais em língua chinesa clássica... Citando Nuno Júdice (que acaba de morrer  há um mês e meio), diz que a melhor "tradução" é, no fundo, a que esconde melhor a "traição":

(...) "No que me diz respeito, sei que no poema traduzido tem de estar a voz e o sentir  do poeta chinês,mais a minha própria  leitura poética, em língua portuguesa.Porque se o poema sínico parece intraduzível (por isso eu o traduzo!) avanço paraa  reinvenção, recriação, reimaginacção, transcriação, retradução. E o poema contrabandeado já é outro poema. É de Su Dongpo, mas agora também é meu" (pp. 53/54)... 

É intelectualmente honesto ao reconhecer as suas próprias limitações da língua chinesa: "É bárbaro e redutor eu ter começado a estudar chinês apenas nos primeiros seis anos de vida na China, já com 30 anos de idade" (pág. 54).


Pequeno vídeo ('54), com um excerto do programa da SIC Notícias em que o poeta e crítico literário Pedro Mexia faz uma referência a este último trabalho de tradução do António Graça de Abreu. Um justa referência. (Cortesia do filho do tradutor, o João Wang de Abreu, que gravou o excerto, e naturalmente à estação televisiva)


Este livrinho merece mais notas de leitura (pelo menso uma II Parte). Daqui a duas horas vou para o hospital para ser operado a uma  segunda catarata, mas quero aqui deixar um agradecimento ao nosso amigo e camarada por nos dar o privilégio de podermos ler, na língua de Camões, Machado de Assis, Eça de Queiroz, Fernando Pessoa e Mia Couto, um expoente máximo da poesia clássica chinesa, que ainda hoje se lê pela sua humanidade, universalidade, atualidade e "legibilidade" (o termo, muito apropriado,  é do Pedro Mexia).

Aqui vai um um dos poemas traduzidos, e que eu assinalei, como um dos que mais gostei:

Sonhando com a esposa morta, há dez anos atrás:

Dez anos, a vastidão da vida e da morte,
não quero pensar, não consigo esquecer,
a mais de cem léguas,
o teu túmulo frio, solitário.
A quem confessar  tanto sofrer ?
Se nos reencontrássemos hoje,
não me reconhecerias,
a cara coberta de poeira,
os cabelos como  geada branca.
Num sonho, esta noite,
o regresso ao nosso lar.
Diante da janela,, escolhias o vestido,
pintavas cuidadosamente  o rosto.
Olhámos um para o outro, em silêncio,
lágrimas corriam em nossas faces.
Ano após ano.
o mesmo sonho rasgando oo coração.
No teu túmulo, entre pinheiros,
o brilho do luar subindo a colina. 

(In: António Graça de Abreu - "Poemas de Su Dongpo", Lisboa, 2023, pág. 104.).

Em nota de rodapé, o tradutor explica-nos que este poema foi escrito em 1075, onze anos depois da morte, de parto (aos 26 anos), da sua jovem esposa (tinha 16 anos quando se casaram). O bebé também não sobreviveu. "É um dos mais sentidos e famosos poemas da literatura chinesa", sendo "a dor profunda, a beleza trágica das palavras intraduzíveis  para português". (pág. 104)

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Nota do editor:

Último poste da série > 29 de abril de  2024 > Guiné 61/74 - P25459: Notas de leitura (1686): O islamismo na Guiné Portuguesa, de José Júlio Gonçalves, edição de 1961 (Mário Beja Santos)

quarta-feira, 1 de maio de 2024

Guiné 61/74 - P25467: Historiografia da presença portuguesa em África (421): A Guiné e os tempos da Restauração da Independência, por Leite de Magalhães (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 27 de Novembro de 2023:

Queridos amigos,
O Coronel Leite Magalhães deixou um apontamento escorreito neste trabalho coletivo intitulado "A Restauração e o Império Colonial Português", que a Agência Geral das Colónias editou em 1940, no âmbito das comemorações do centenário. Ainda hoje se pode ler com agrado o que Damião Peres escreve sobre o império português na hora da Restauração ou a reconquista em terras brasileiras, trabalhos de Pedro Calmon e Hélio Viana. O antigo governador da Guiné entendeu espraiar-se pelos acontecimentos de Alcácer Quibir e as consequências decorrentes do desastre, descreve depois a Costa da Guiné até à dominação filipina, retrocede até ao programa do Infante D. Henrique, deixa-nos um esboço do que representou a fragilidade da presença portuguesa durante o período do domínio filipino na Costa da Guiné e a resposta dos Bragança para procurar reconquistar o Império, no caso da Costa da Guiné era já muitíssimo tarde, tínhamos ficado confinados entre o Casamansa e a Península de Cacine, escusado é dizer que foi presença ténue até às exigências impostas pela Conferência de Berlim.

Um abraço do
Mário



A Guiné e os tempos da Restauração da Independência, por Leite de Magalhães

Mário Beja Santos

Em 1940, a Comissão Executiva dos Centenários/Agência Geral das Colónias editou o volume A Restauração e o Império Colonial Português, nele colaboraram personalidades como Damião Peres, Pedro Calmon, Hélio Viana, António Leite de Magalhães e o general Ferreira Martins. A comunicação do coronel Leite de Magalhães prende-se com a costa da Guiné, introduz as consequências do desastre de Alcácer Quibir, aludes às Cortes de Almeirim e depois às Cortes de Tomar que consagram Filipe II de Espanha rei de Portugal, começa agora a sua extensa leitura dos acontecimentos da dominação filipina na costa de África. Inevitavelmente, retrocede ao plano henriquino, às viagens posteriores à passagem do Cabo Bojador, aos relatos que Zurara faz na sua Crónica da Guiné quanto à expedição de Lançarote de Lagos, Gonçalo de Sintra, Diogo Gomes e o mapeamento da costa, porque as viagens sucedem-se. Pouco antes da morte do Infante D. Henrique, Álvaro Fernandes, sobrinho de Gonçalves Zarco alargara os reconhecimentos chegando à ilha de Arguim. E depois da morte do Infante, escreve o antigo governador da Guiné, a Costa da Guiné estendeu-se na viagem de Rui Sequeira, em 1475, até ao Cabo Catarina. Foi este o último dos navegadores, que nos termos do contrato celebrado entre Fernão Gomes e D. Afonso V fizeram o descobrimento da costa desde o Cabo Mesurado – onde havia chegado Pedro de Sintra, após a morte do Infante, até ao extremo do golfo de Biafra. O autor passa naturalmente em revista a natureza do comércio e o tipo de presença que os portugueses iam estabelecendo em feitorias. Nada de especial vai acontecer nesta região até à ocupação de Lisboa pelas tropas do Duque de Alba, em 1580. As jurisdições da capitania de Arguim, para norte do rio Senegal, e a de Santiago de Cabo Verde, entre o rio Senegal e a Serra Leoa, e a da capitania de S. Jorge da Mina, desde a Serra Leoa até ao Rio Real, mantinham-se inalteradas.

Se era facto que Portugal já não tinha condições para impedir a concorrência estrangeira na região, a União Ibérica agravou, e muitíssimo, a situação. Os franceses intentavam uma expedição ao Castelo da Mina, os navios normandos desciam com cada vez mais frequência até à Costa da Guiné. É o próprio André Álvares de Almada que refere no Tratado Breve que ingleses e franceses são uma presença constante na região. Estes franceses e ingleses faziam comércio na Goreia, hoje Senegal, entendiam-se muito bem com os lançados portugueses. E, por isso, Almada escreve no seu Tratado Breve que os resgates na Costa do Cabo Verde até ao rio de Gâmbia estavam perdidos.

A derrocada do poderio português e do império sofre um rude golpe com as destruições da Invencível Armada, perderam-se 77 navios e cerca de 10 mil homens e mais de 100 milhões de ducados. Com o enfraquecimento da posição portuguesa intensificou-se o curso e é dado assente que a penetração inglesa na Costa da Guiné ganhou forma desde 1588. Os inimigos de Espanha eram os inimigos de Portugal. Filipe II obrigou Portugal a participar na luta que se tratava nos Países-Baixos, isto numa altura em que se formava a Companhia das Índias Orientais que passavam a ter um monopólio de comércio para além do Cabo da Boa Esperança. Tudo se vai tornando cada vez mais difícil para a presença portuguesa, assaltos ao Castelo de S. Jorge da Mina, a audácia da pirataria holandesa nas ilhas de Cabo Verde. Os franceses não ficaram atrás. Os traficantes de Dieppe e Ruão associaram-se em 1626 para a fundação da Compagnie Normande que passou a ter o privilégio de dez anos entre o Senegal e o rio Gâmbia. Na Goreia, os holandeses fizeram da ilha a sua base de operações. Os três fortes portugueses que havia ao longo da costa – Arguim, Axem e S. Jorge da Mina – tornaram-se o alvo da sua cupidez. Os holandeses movem-se por toda a parte, chegam ao Brasil, ali se implantam, o mesmo acontecerá com a fortaleza de S. Paulo de Luanda, em 1648.

Com a Restauração, apenas Axem ficara de pé, e o no cômputo geral do que fora a nossa presença na Costa da Guiné nada mais nos ficara de que um pequeno bocado compreendido entre o rio de Casamansa e Cacine. D. João IV tinha muito que acudir, desde a presença espanhola, a salvar o Brasil, a reconquistar a região de Angola. Para lutar contra a Espanha, o rei de Portugal firmou tratados de aliança com a França, a Holanda e a Inglaterra; no Brasil os holandeses vão conhecer reveses fatais, em África reconquista-se Angola. Faz-se um tratado de paz com Holanda, perde-se posição no Oriente. E de forma mitigada regressa-se a Cacheu, faz-se fortaleza, retomam-se outras feitorias, tudo modestamente.

Como observa no seu texto o coronel António Leite de Magalhães a presença portuguesa nessa velha Costa da Guiné ainda se ia mantendo e mantém-se as designações geográficas das terras que a pilhagem arrebatou; e nas populações cristãs que os seus missionários, tantas vezes ingloriamente, catequizaram; e até nas citrinas se deixou nome, mais tarde Teixeira da Mota e outros investigadores farão inventário dos nomes portugueses que constam na topografia da Costa da Guiné por onde cirandámos durante séculos, até se ter diluído a nossa presença.

É este em síntese o documento que Leite Magalhães, que foi governador da Guiné de 1924 a 1931 (afastado depois dos acontecimentos da Revolta Triunfante, pois na Guiné houve um golpe republicano que foi rapidamente jugulado, o governador é preso, afastado, regressará a Bolama por pouco tempo, até ser substituído) nos deixou no trabalho coletivo sobre a Restauração e o império colonial português.

Clicar na imagem para ler o texto
População de Cacheu buscando água numa fonte, 1900
Padrão português que Cacheu conserva
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Nota do editor

Último post da série de 24 DE ABRIL DE 2024 > Guiné 61/74 - P25440: Historiografia da presença portuguesa em África (420): Sim, Bissau teve uma capital de ficção antes de 1941 (Mário Beja Santos)